hoje chove muito, muito
e parece que estão lavando o mundo
meu vizinho do lado olha a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta a uma mulher que vive com ele
e cozinha e lava a roupa e faz amor com ele
e até parece sua sombra
meu vizinho nunca disse palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta se entra em muitos lugares
ao trabalho, ao quartel, ao cárcere, a todos os edifícios do mundo
mas não ao mundo
nem à mulher
nem à alma
é dizer
a esse caixão ou nave ou chuva que assim chamamos
como hoje
que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde os dois se encontram
e quando
e como
mas a alma que pode explicar
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol por que nascem
e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas que o pensamento nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu
que escrevo versos para voltar ao meu vizinho que olha a chuva
à chuva
ao meu coração desterrado
Poema de Juan Gelman, provavelmente o maior nome vivo da poesia argentina.
Traduzido por Raul Albuquerque.
Lindíssimo! Não conhecia esse do Gelman.
ResponderExcluirOs bons poemas de Gelman parecem ser inesgotáveis...
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