Bem-Vindo ao Estação 018!


Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Lluvia" (de Juan Gelman)





hoje chove muito, muito
e parece que estão lavando o mundo
meu vizinho do lado olha a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta a uma mulher que vive com ele
e cozinha e lava a roupa e faz amor com ele
e até parece sua sombra
meu vizinho nunca disse palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta se entra em muitos lugares
ao trabalho, ao quartel, ao cárcere, a todos os edifícios do mundo
mas não ao mundo
nem à mulher
nem à alma
é dizer
a esse caixão ou nave ou chuva que assim chamamos
como hoje
que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde os dois se encontram
e quando
e como
mas a alma que pode explicar
por isso meu vizinho tem tormentas na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol por que nascem
e morrem na mesma noite em que amou
e deixam cartas que o pensamento nunca escreverá
como o silêncio que há entre duas rosas
ou como eu
que escrevo versos para voltar ao meu vizinho que olha a chuva
à chuva
ao meu coração desterrado

Poema de Juan Gelman, provavelmente o maior nome vivo da poesia argentina.
Traduzido por Raul Albuquerque.

menina


E por que em teus olhos 
não via pecado
os meus brilhavam
ao procurar 
em ti
defeito e não achar.

Mas tu foste,
menina.

A lua 'inda reinava,
quando correste de mim
- ou correste atrás de ti,
nunca saberei.

Fato é que foste,
menina.

Lembro do teu vestido
que era berço do verso no vento,
quando eu te empurrava no balanço
e ensaiavas o voo.

Por que te foste,
menina?

Se nas manhãs de segunda
e de quinta,
eras a primeira a me ver
acordar.
E inventamos novos nomes
pra nós dois
- cheios de diminutivos
e aumentativos e ironias
e risos entrecortados.

E esses nomes, para onde foram,
menina?


Eu não te vi indo,
mas na luz percebi 
que já não eras nem estavas:
a janela silenciava.

Onde estás,
menina?

Se ouvires esse lamento
afônico, saiba que te espero na sacada,
meus braços sujos querem sujar
tuas roupas brancas,
menina.

Vem inocente
ou ainda delinquente,
menina,
mas vem
que aqui a gente se resolve.

Raul Albuquerque
30/05/2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Inocência



Inocência,
depois de anos de estadia,
acordei e ela já não estava lá.

Isso aconteceu há algum tempo.

Minhas memórias
já não dão conta 
da época em que
ela estava por aqui.

Por vezes, lembro-a como
uma menina
em vestido branco de 
seda e tule 
que dança a valsa das flores
no meio da sala.

Ou estaria nua,
Inocência?
E, em seu corpo
assexuado,
meus olhos
viam apenas
os pássaros do céu
da boca...

Inocência,
se menina for,
teria fugido?

Mas por quê?
Seria-lhe insuportável
as sujeiras que surgiam
eventualmente
nas paredes, no chão,
na varanda?

Inocência,
por vezes lembro-a como
caixa branca
inviolável.

Mas não a acho
e não me lembro de
tê-la jogado fora
- ela era tão linda...

Deve estar perdida
sob as roupas sujas
- quanta preguiça de lavá-las -,
sob os livros abandonados
- quanta preguiça de organizá-los -,
sob os rascunhos de poemas
- quanta preguiça e
quanto medo em terminá-los.

Inocência,
por vezes lembro-a
como menina, caixa ou delírio,
por vezes esqueço-a
como se nunca houvesse sido.

sábado, 25 de maio de 2013

Cruel manhã

A janela,
antes porta do universo,
já vai esbranquiçando.

Dói saber que já é a manhã,
que hoje já é amanhã.
Dói em mim
saber que, sim,
haverá um fim
e não tardará:
a manhã vem te buscar.

Mas permanece deitada aí
e sonhando,
que eu vou relembrando:
teus olhos fechados gritavam,
tua boca aberta me calava,
tuas mãos fechadas me comportavam
e me carregavam por sete céus,
tuas pernas... quanto guardavam!

Rio
quando lembro de ti.

Mas é o que sempre dizem:
depois de uma ótima noite,
sempre vem a cruel manhã...
ou algo parecido.

Raul Albuquerque
25/05/2013

Hei


Nasci escravo
por herança:
sou filho de Homero
- talvez o escravo primeiro.

Vivemos cercados
por paredes
tão concretas quanto o encanto;
tão vivas quando a imagem de quem morreu;
tão próximas quanto a utopia mais distante.

Assim, a nós outros,
os que nascem escravizados,
o encanto é o que há de mais concreto,
as imagens dos mortos saem da parede e falam,
o amor está sempre próximo
- ameaça constante.

Se tais coisas
não são desse inebriante modo
em teus domínios,
és livre.

Eu sou escravo
- o que lamenta,
resmunga, faz cena
e ri-se de si próprio
ao fim do espetáculo.

Mas não tenhas 
pena de mim
- herdeiro da pena
de Camões.

Um dia hei de ser liberto,
deixarei aqui meu corpo
e sairei livre a desenhar
sete sóis no asfalto
das ruas 
da morte.

Raul Albuquerque
25/05/2013

sexta-feira, 24 de maio de 2013

"Recuerdo que el amor..." (de Eduardo Lizalde)



Recordo que o amor era uma branda fúria
não expressável em palavras.
E assim mesmo recordo
que o amor era uma fera lentíssima:
mordia-me com seus caninos de açúcar
e adoçava o toco ao desprender o braço.
Isso sim lembro-o.
Rei das feras,
matilha de flores carnívoras, buquê de tigres
era o amor, segundo recordo.
Lembro bem que os cachorros
se assustavam de ver-me,
que se eriçavam de amor todas as cadelas
só de observar a aura, cheirar o brilho do meu amor
- como se o estivesse vendo -.

Recordo-o quase de memória:
os móveis de madeira
floresciam ao toque de minha mão,
me seguiam como mulherengos
grandes e magros rios,
e as árvores - ainda que infrutíferas -
davam por dentro ressentidos frutos amargos.
Recordo muito bem tudo isso, amada,
agora que as abelhas
caem ao meu redor
com o bucho cheio de excremento.

Poema de Eduardo Lizalde, grande poeta mexicano da atualidade.
Traduzido por Raul Albuquerque.

"Bellísima" (de Eduardo Lizalde)




Ouça-me você, belíssima,
não suporto seu amor.
Olha-me, observa de que modo
seu amor me machuca e destrói.
Se fosse você um pouco menos bela,
se tivesse um defeito em algum lugar,
um dedo mutilado e evidente,
alguma coisa ríspida na voz,
uma pequena cicatriz junto a esses lábios

de fruta em movimento,
uma mancha na alma,
uma má pincelada imperceptível 
no sorriso...
eu poderia tolerar-te.

Mas tua cruel beleza é implacável,
belíssima;
não há ramo de repouso
em tua ferina luz
de estrela em permanente fuga
e desespera compreender
que ainda a mutilação te faria mais bela,
como a certas estátuas.

Poema de Eduardo Lizalde, grande poeta mexicano da atualidade.
Traduzido por Raul Albuquerque.

sábado, 18 de maio de 2013

o como e o porquê

como consegues guardar
os ventos do norte em teus pulmões?

como guardaste o mel 
em teus olhos?

como fizeste para roubar
os atributos que só existiam
nos contos mitológicos de
Hélade?

como consegues guardar
em seguro silêncio 
a poesia que calou-se 
depois de Dante?

como me fizeste escrever esses versos?

Raul Albuquerque
18/05/2013

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Cópia



não passo de cópia
do pecado original

a cópia mal feita
rabiscada e engavetada

talvez seja eu a cópia
que não foi fiel

a cópia que pecou 
por não ser cópia
por renegar raízes
por tentar o parricídio

talvez seja eu a cópia
que se desfez de certos traços
para tentar não ser cópia

a cópia que não entendeu
que, se não for cópia,
será nada
e, se quiser ser algo,
será cópia.

talvez seja eu a cópia
que prefere ser
cópia adulterada
irreconhecível
a ser cópia fiel

Raul Albuquerque
17/05/2013

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Pó no vento



Fim de tarde.
Passara o despertar da alva.
Passara o causticar do alto meio-dia.
Fim de tarde.

Olhava para trás
e via o campo eterno já arado,
via os sulcos abertos e aspirantes,
mas angustiava-se.
Onde estavam o frutos?
Nem flores surgiriam?
Sementes em dormência eterna?

Constatou
o tempo vão
e o vazio do campo.
Desistiu:
uniu as quatro pontas da vida quadrada
e voltou a ser pó 
que viaja no vento.

Vento que leva pó
e por si só
prega a vaidade do tempo:
só sobrará o pó e
soçobrará o barco.

Vento que leva pó
e por si só
ensina os círculos que a vida descreve:
faz girar o catavento na mão da criança
levando o pó de quem
perdeu-se no desespero da esperança.

Raul Albuquerque
16/05/2013

quarta-feira, 15 de maio de 2013

pedidos

Que eu não me acostume a não escrever
e que cada dia sem produzir palavras
seja guardado para um momento de inspiração.

Que cada silêncio da alma seja produzir afônico
de falsos - mas igualmente belos - testemunhos.

Que cada dia sem escrever
seja uma eternidade lacerante.

Que meu poema seja meu,
mas sem deixar de ser de quem o leu:
poemas são duetos.

Que, quando findar o que sou
- ou que acho que sou -,
restem apenas o pó,
o sopro e o coração
no qual minhas veias 
derramaram versos.

Raul Albuquerque
15/05/2013

sábado, 11 de maio de 2013

Aquele silêncio


Encantou-me,
porque ela era toda silêncio.
E eu, que era todo palavras,
vi-me no salão vazio.


Encantou-me,
porque ela era toda silêncio,
e sua chama não era incêndio,
mas queimava como se queimam
as cartas arrependidas.

Encantou-me,
porque, quando pensei que 
ela era toda silêncio, revelou-se
toda palavra
e em tão poucas palavras
comprou-me como ouvinte.

Encantou-me
em seu tímido olhar mel
- em gosto e em cor -
que, por vezes baixo,
era fim de tarde infinda.

Não é amor, ainda é fascinação,
porque amor não tem motivo,
amar é estar preso, cativo,
sem castigo nem perdão.

Mas este teu silêncio
dá-me, por si só,
mais de mil motivos para amar-te.

Raul Albuquerque
11/05/2013

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Flauta transversal


O ataque em lá
da flauta transversal
traspassou
meus mil muros
- cansados de esperar por alguém 
que os derrube -
e tocou violenta
e singelamente
o que mais resguardei:
o fruto sagrado
que, se guardado, 
é eterno,
se exposto,
acaba estragado.


O ataque em lá
da flauta transversal
traspassou meu corpo
e, em vez de morto,
vi-me vivificado
no esvaziar-me de mim
pelo corte aberto
na carcaça imunda
e, só então,
pude encher o pulmão 
de ar e de esperança,
ascendendo aos céus
e
acendendo as luzes.


O ataque em lá
da flauta transversal
varou o salão 
e só sei que
ouvi portas abrindo,
paredes caindo
e filhos nascendo.

Raul Albuquerque
10/05/2013

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Novas histórias mal-contadas

aviso

num incontido bocejo avisou
como era empolgante saber
que o dólar valorizou
e a seleção acaba de vencer

subentendido

o mal da tua linguagem
é que falas o silenciável
deixas o importante à margem
e nunca confessas o inegável

stalker

na casa que já foi minha
entro hoje pela porta de trás
pulando o muro da vizinha
só pra ver-te dormir em paz

verlaine: le musique

antes dos dados, das datas,
dos doidos, das ditas doidas dormentes,
dos sussurros, dos urros frementes,
da métrica tétrica e tântrica,
da escrita automática e epifânica,
antes de tudo,
a música.

monarquia

empossada rainha sobre tudo
reinas post-mortem sob lei funesta
se desapareces, decreta-se luto
se vens, tudo refaz-se em festa

contrato

ah, o poder que certas músicas
e certos poemas têm
de serem especiais só pra mim
e pra mais ninguém.

caixa

a vida é uma caixa pequena demais
nem bem cabe o vento
pomos umas besteiras e nada cabe mais
já falta espaço
já acabou o tempo

Raul Albuquerque
09/05/2013

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Outras histórias mal-contadas

semanais

há quem espere o domingo
durante toda a semana
assim um domingo
assim outro domingo
e na hora de levantar
permanece dormindo

perdas e ganhos

num prematuro sorriso
sete meses valeram a pena
até dois meses a mais pagaria
mais peso mais noite mais dia
por aquela inquietação tão serena

édipo

mamãe me geme ao ouvido
na minha cama natal
e papai é morto e esquecido:
fatalismo fatal.

espelho

paixão é espelho defectivo
não sabe bem o que indica
se ela não está, abre o arquivo
se ela se vai, a imagem fica

insinuações

tranca a porta
deixa a lâmpada apagada
que o escuro nos comporta
e a noite nunca está cansada

urban art

no muro do prédio abandonado
grito de quem observa tudo
e nunca é observado

o que se quer

danem-se 
o vintage e o new age
o antigo e o moderno:
eu quero o eterno!

Raul Albuquerque
08/05/2013

Soneto a Abril



Abril, recolhe tu as tuas garras,
o riso dela precisa viver
lindo - como pintado no atelier
em que um deus compõe fanfarras.

Abril, não ouses deixá-la infeliz,
a alegria dela é a aquarela
usada pra deixar a manhã mais bela
e eterna do que sempre se quis.

Abril, quando tiveres tua vez
- e trocarmos os nossos calendários -,
faze-a feliz como ela merece.

Faze-a feliz como ela me fez
com meus dramas e seus sorrisos diários.
No fio dela, minha alegria se tece.

Raul Albuquerque
08/05/2013

terça-feira, 7 de maio de 2013

Mais histórias mal-contadas

frustração

ao sinete distante,
correu a atender a amada.
momento frustrante:
mensagem informante
dos créditos e mais nada

abstração

ansioso fitava a estrada
e ouviu alguém dizer-lhe oi
enquanto curioso procurava
o ônibus que esperava se foi

wake up

em momento de desilusão
clamou ao céu por um prazer diminuto
tapando os olhos com a mão
implorou: só mais cinco minutos

sem energia

acordou suado
ventilador desligado
nenhuma lâmpada acendia
ah, ninguém merece queda de energia

identificação

ao fim do livro
sempre acontecia:
eu não conheço o autor,
mas ele me conhecia

(dis)simulação

diante da piada sem graça
não sabia o que falar
decidiu digitar kkkkk

times

meu medo é o tempo passar,
sempre dizia em si bemol.
odiava espelhos e relógios
os calendários todos ilógicos
no café da manhã: pão com formol.

Raul Albuquerque
07/05/2013

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Histórias mal-contadas

descompasso

sol a pino sobre
esquecida casa
e lá dentro
relógio marcando
meia-noite

desistência

tarde de maio
corpo caindo dum arranha-céu:
desistiu de tentar voar


sem rede

caiu a rede
e enredado no ócio
caiu no sono

em silêncio

longe do chororô
na porta da igreja
alguém lamentava 
silenciosamente

dúvida

entre o sim e
a chuva de arroz
estremeceu:
a certeza revelou-se
incerta

ponto de vista

na oitava briga
deitou o rosto
e viu o infinito

estilo

sob as roupas novas
aquela frustração
sempre in
nunca out

Raul Albuquerque
06/05/2013

sexta-feira, 3 de maio de 2013

unidade

na volta 
pelos mesmo trilhos
sete velhos
o pensamento um só:
depois de hoje,
quem cantará para nós?

Raul Albuquerque
03/05/2013

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Peço e aviso


Tu, que vens tão lentamente
da inacessível terra em que nascem os rios
e desenham-se as flores mais raras
e gravam-se as músicas que a solidão toca
e guardam-se os olhos da felicidade,
podes chegar mais cedo?

É que nem sei dançar,
terei ainda de aprender contigo.

É que te espero para 
o sorriso mais largo,
para o eu-te-amo
mais sincero e necessário,
para dormir no colo
por toda uma tarde,
para a realidade
que faça inveja ao sonho.

É que te espero.
Mesmo sem saber se és paz,
se és revoada,
se és estadia,
se és fim de tarde,
manhã de frio ou
alta madrugada,
desde já, amo-te.

Raul Albuquerque
02/04/2013

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O "crepúsculo" de Pablo Neruda


Ninguém nasce Pablo Neruda - nem o próprio Pablo Neruda nasceu Pablo Neruda. 

Explico: o nome "real" de Neruda é Neftalí Ricardo Reyes Basoalto (o pseudônimo e seu motivo nunca foram bem explicados pelo escritor)

A grandiosidade alcançada pelo poeta chileno no auge de sua produção é resultado, não de um milagre, mas de um processo. Quem lê "Residência na terra" há de entender que antes do meio-dia sempre há uma manhã crepuscular, assim sendo, Pablo Neruda inicia-se na literatura com um livro profético: "Crepusculário".

Crepusculario. Pablo Neruda

O livro reúne os poemas escritos por Neruda entre os dezesseis e os dezessete anos, quando, segundo o próprio, escrevia entre dois e cinco poemas diariamente. Já no "Início" (primeiro poema do livro), o precoce gênio avisa:

"Fecho, fecho os lábios, mas em rosas frementes
se desata minha voz, como água na fonte.

Que não são pomposas, que não são fragrantes,
são as primeiras rosas - irmão caminhante -
de meu desconsolado jardim adolescente."

A primeira publicação consta de 1923, quando o iniciante Neruda ainda publicava avulsamente em jornais e revistas, e é dividida em "capítulos". 
O primeiro é Helios. Nele, tomam destaque os questionamentos sobre Deus (observado com ênfase em "Pantheos"), sobre o tempo (como em "Velho cego, choravas") e sobre o amor (em "Novo soneto para Helena"), mas em todos vê-se uma forte influência parnasiana e surrealista:

"Se quiseres não nos diga de que ramo somos,
não nos diga quando, nem nos diga como,
mas nos diga para onde nos levará a morte..."
(trecho de Pantheos)

"Porque se tu conheces o caminho que leva 
em dois ou três minutos para a vida nova,
velho cego, o que esperas, o que podes esperar?"
(trecho de Viejo ciego, llorabas)

"E será tarde, porque se foi minha adolescência,
tarde porque as flores uma vez só dão essência
e porque ainda que me chames estarei tão longe..."
(trecho de Novo soneto para Helena)


O segundo é Fareweel, y los sollozos. Nele, o amor toma destaque, mas o aspecto parnasiano perde força, dando espaço para uma forte carga surrealista, na temática, e modernista, na estética. Farewell, que parece ser o poema central (e titular) do capítulo, destaca-se como uma carta - interrompida por parênteses literais.

"(Amo o amor dos marinheiros
que beijam e se vão.

Deixam uma promessa.
Não voltam nunca mais.

Em cada porto uma mulher espera:
os marinheiros beijam e se vão.

Uma noite se encostam na morte
no leito do mar.

(4)

Amo o amor que se reparte
em beijos, leito e pão.

Amor que pode ser eterno
e pode ser fugaz.

Amor que quer libertar-se 
para voltar a amar.

Amor divinizado que se achega.
Amor divinizado que se vai.)"
(Trecho de Farewell)

"Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como ninguém soube jamais!
Morrer e ainda 
amar-te mais.
E ainda 
amar-te mais
                       e mais."
(Trecho de Amor)

" Amor - chegado que tenhas
  a minha fonte distante,
  torce-me as vertentes,
  crispa-me as entranhas.
E assim uma tarde - amor de mão crueis -,
ajoelhado, te agradecerei."
(Trecho de Grita)

O terceiro é Los Crepusculos de Maruri. Segundo o próprio Neruda, os poemas desse capítulo foram escritos por ele enquanto admirava os poentes. Eles focam nos devaneios advindos dessa contemplação e são tomados pelo experimentalismo modernista.

"A tarde sobre os telhados
cai
e cai...
Quem lhe disse que viesse
asas de ave?

E este silêncio que enche
   tudo,
de que país de astros
   veio só?
E por que esta bruma
   - pluma trêmula -
beijo de chuva
   - sensitiva -

caiu em silêncio - e para sempre -
   sobre minha vida?"
(Poema La tarde sobre los tejados)

"Minha alma é um carrossel vazio no crepúsculo..."
(Poema Mi alma)

"Minhas alegrias nunca saberás, maninha,
e esta é a minha dor, não as posso te dar:
vieram como pássaros a pousar em minha vida,
uma palavra dura as faria voar."
(Trecho de Hoy, que es el cumpleaños de mi hermana)


O quarto capítulo é Ventana al camino. Nele, o surrealismo ganha força total e as metáforas - quase herméticas - tomam os poemas.

"Entretanto é tão vasto céu
e roda o tempo, entretanto.
Estender-se e deixar-se levar
por este vento azul e amargo!..."
(Trecho de Playa del Sur)

"Ela - a que me amava - morreu na Primavera.
Recordo ainda seus olhos de pomba em desconsolo.

Ela - a que me amava - fechou os olhos. Tarde.
Tarde de campo, azul. Tardes de asas e voos."
(Trecho de Poema en diez versos)

O quinto capítulo é Pelleas e Melisanda. Não por acaso, referência à opera de Claude Debussy. Esse capítulo põe-se como releitura da obra, um diálogo entre os personagens.

"Melisanda
Em teus braços, enredam-se as estrelas mais altas.
Tenho medo. Perdoa-me por não ter chegado antes.

Pelleas
Um sorriso teu apaga todo um passado:
guardem teus lábios doces o que já está distante.

Melisanda
Em um beijo, saberás tudo o que calei."
(Trecho de Melisanda e Pelleas)


O sexto e último capítulo é Final.

"Vieram palavras, e meu coração,
incontível como um amanhecer,
rompeu-se me palavras e se apegou ao voo,
e em suas fugas heroicas levam-no e arrastam-no,
abandonado e louco, e esquecido debaixo delas

como um pássaro morto debaixo de suas asas."
(Trecho final de Final)

VIVA NERUDA!

(todos trechos destacados foram traduzidos por Raul Albuquerque)