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Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Crítica do livro 'Leite Derramado"


"Jó Joaquim, genial, operava o passado - plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?"
O trecho acima do conto "Desenredo" - do grande Guimarães Rosa - veio me à cabeça logo que acabei a leitura do "Leite Derramado", de Chico Buarque de Hollanda. Explicarei.

Chico já ganhou seu prestígio como compositor - que é inegável -, mas no campo da produção literária ainda enfrenta resistências. Sua obra tem aceitação dual: uns amam, outros queimariam na fogueira todos os exemplares. Bem... Eu devo confessar que o Chico-compositor é mais genial que o Chico-romancista, ele acostumou-nos mal, mas representa o que de melhor se produz hoje no Brasil.

O livro - publicado em 2009 - foi bem aceito pela crítica - não em unanimidade, claro. Ganhou prêmios de peso: Livro do Ano (oferecido pelo Jabuti) em 2010; Prêmio Portugal Telecom de Literatura de 2010; e a tradução para o espanhol - "Leche derramada" - ganhou recentemente o Prêmio de Narrativa José Maria Arguedas

Enfim... vamos à crítica.

O livro é uma tentativa de retratar as memórias do velho Eulálio d'Assumpção - sim, esse é o nome. Um monólogo que toma todo o livro a fim de convencer-nos que seu passado glorioso - que transpõe o Atlântico e atravessa o império - reverbera a ponto de trazer  tal glória ao seu estado atual: um velho pobre, esclerosado, esquecido num leito de hospital, esperando a morte chegar.

E onde é que o "passado plástico" de Jó Joaquim entra nessa história?

Na mente cansada e desordenada do pobre - mas orgulhoso - Eulálio, passados misturam-se e a ordem dos fatos não possui sentido. Ao longo do livro, os fatos retificam-se frequentemente - nem sempre com aviso.
"Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. [...] a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia."
Lembranças da infância e da adolescência misturam-se e repetem-se. Com humor sempre presente advindo do absurdo das histórias, dos preconceitos do protagonista - que não são poucos -, da repetição dos fatos, das releituras. O passado de Eulálio torna-se plástico, pois nem ele próprio sabe bem como contá-lo e defini-lo.
"[...] e era natural que me causasse espécie entrar comigo no elevador um grandalhão com cara de nortista, nariz chato, pele grossa. Indiquei-lhe o elevador de serviço, mas ele me deu as costas e apertou o botão do meu oitavo andar."
Os detalhes de um passado que mistura esplendor e contos da vida privada são expostos sem vergonha. As garçoniéres de Paris, os ímpetos incontíveis, tudo é descrito com detalhes horrorizantes ou cômicos.
"Matilde repetiu, coragem, Eulálio, e já agora, em sua voz ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura. Falou meu nome como se o arranhasse um pouco, e quando num volteio se retirou, tive como temia novo arrebatamento obsceno. [...] Se desejo era aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto."
A morte de Matilde é o ponto que mais possui versões. Por ser um episódio doloroso, talvez. Ela é apresentada como tuberculosa, esquizofrênica, mãe irresponsável, esposa infiel e mulher de pouca saúde. Cabe ao leitor escolher a melhor história ou ficar no maravilhoso ponto da dúvida.

A linguagem adaptada a um homem que chegou ao século XXI sem sair do século XIX foi bem colocada. A pontuação é utilizada de modo peculiar. A(s) história(s) é(são) bem contada(s).

O livro merece, sim, os prêmios e elogios que recebeu. Num tempo de literatura de mercado, precisamos valorizar os que ainda se põem a descrever a vacuidade das nossas vidas. 
O livro termina com a descrição da morte de um Assumpção - "que já não dizia nada com nada" - numa espécie de sugestão de "não há nada novo debaixo do sol". 
Os eulálios continuariam existindo - inclusive literalmente, pois os netos, bisnetos, trinetos tiveram o mesmo nome do orgulhoso Eulálio.

Viva Chico! - Eu indico!

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