eu preciso conversar.
tenho posto a culpa de muita coisa em outrem.
e, como os últimos fatos foram extremos,
preciso matar todo esse mal
lançando fora a raiz
dessa árvore de insanidades e suposições impensadas
e poemas glicosados escritos instintivamente nas madrugadas.
se a face negada minha for a real culpada,
ela voltará a ter somente a tua função original
- tomarei novamente o timão desse meu barco.
mas se o culpado fui eu...
as estrelas ainda brilham!
depois do deserto,
debruço-me sobre o lago para
saciar-me a sede.
mas – diferente de narciso –
não me apaixono pelo que vejo.
o rosto prematuramente apagado
de quem perdeu muitos pedaços
durante a colagem dos cacos
- depois da terceira queda,
começa-se a perceber que
alguns trechos perderam-se para sempre
- pois nem um louco voltaria na estrada por onde vim.
para saciar a sede
levo minhas mãos sujas à água
e trago a água – agora impura –
à minha boca.
saciada a sede.
durmo impacientemente sobre a grama
e vou sendo sugado por insetos
e pelo tempo.
do pesadelo acordo e é noite.
a lua nova
tão distante
lembra-me a noite
que ficou perdida
num passado recente
- mas emocionalmente distante.
se voltasse a noite em que ela disse sim,
as noites teriam outro ar – acho.
não consigo chorar,
mas deveria.
há horas em que o drama deve exceder as palavras.
mas o meu drama restringe-se às palavras
e talvez por isso eu ainda ria das minhas tragicomédias
- ou só por que não valha a pena chorá-las.
até agora,
foi tudo um rascunho malsucedido.
falta-me o insight da história que mereça
ser escrita de verdade
e que mereça ser publicada
e que mereça ser vivida.
mas
foi tudo um rascunho malsucedido.
eu transporia colinas e colunas
por aquele sim. sim, eu iria até lá.
sim, a vida deixou o preto e branco de sempre
por algumas noites.
mas tudo volta a ser filme velho agora
- cinema mudo.
cantarolando a música de sempre
que insiste várias vezes “não me deixe só”.
e que sabe que se mata um coração
a golpes de por quê
e insiste "não me deixe só"
e eu estou só.
e eu estou só.
e eu nunca fui exceção – fui?
eu nem mais sei das regras
para considerar as exceções.
tudo tem sido exceção.
e a exceção tem sido regra.
meu código de conduta
perdeu-se há muito
numa curva de sangue
- e sangrei.
e a lua no céu
e a lua no lago
e a lua naqueles olhos
e a lua desce
e a rua eu desci no ponto alto da madrugada
e a lua me viu
e a rua dormiu sem mim
e a lua é nova
e a rua é antiga
e eu estou na rua
e eu queria fugir para a lua,
mas não saio da rua.
procuro no escuro a minha casa.
e sigo procurando.
e paro na praça.
aquele sim...
eu deveria ter pedido algo por escrito
e assinado embaixo...
eu deveria parar de pensar naquele sim...
eu deveria esquecer...
talvez fosse sono
o nosso problema
talvez fosse noite
o nosso problema
talvez fosse tarde
e este era o nosso problema:
talvez fosse cedo, talvez fosse tarde,
talvez fosse sem tempo, talvez não fosse
talvez... talvez nós fôssemos o problema,
ou a mútua solução... talvez! e só me resta o talvez.
habituado a nunca terminar tarefas
e nunca concretizar os planos,
pus-me a contar as estrelas.
nunca haviam sido tão belas.
onde se escondem durante o dia?
teriam, pois, casas?
alguma delas hospedar-se-ia em minha casa?
casa! que casa?
esqueci onde moro.
esqueci onde moro.
perdi o papel em que anotei meu endereço
e meu nome.
e hoje tudo é amnésia.
e tudo na memória é nevoeiro
como as manhãs frias em que a névoa
dissipa-se lentamente e releva a paisagem que escondia.
mas hoje tudo é névoa
- que resiste em dissipar-se...
teria vergonha do que esconde?
desisti de contar estrelas.
em cada estrela,
uma dor revisitada.
se eu fosse dos que choram,
se eu fosse dos que choram,
para cada estrela, sete lágrimas.
e para cada dor, contariam-se sete estrelas.
e tudo é dor.
pontadas finas como as estrelas
pontadas finas como as estrelas
no ventre da alma
- e eu me contorço
como quem dança uma melodia imaginária.
nenhum riso.
só noite e amnésia.
só noite e amnésia.
levo na lembrança só o esquecimento.
eu não sigo lógicas...
eu só levo na lembrança
eu só levo na lembrança
o que era para ter esquecido,
mas é do meu feitio resistir em jogar coisas no lixo:
ainda guardo as provas da quarta série,
ainda tenho umas cartas - cheias de verdades
que o tempo tornou inverossímeis - que me escreveram,
ainda mantenho na caixa carregadores antigos
e remédios fora da validade...
acho que é medo que uma amnésia me tome
ou que venha a morte e não sobre nada de mim...
isso também explica por que escrevo tanto
e tão incessantemente
e tão repetitivamente sobre os mesmos assuntos
é só um modo de deixar-se aos poucos
é uma espécie de testamento
ou de herança
ou de carta-suicida
ou só um medo do esquecimento
- e eu estou sendo repetitivo.
olhando as estrelas, decidi conversar com elas.
mas acabou virando um monólogo:
eu não consegui falar nada
e elas tinham tanto a dizer...
eu só posso pensar que algo em mim
gosta dessa lembrança pontiaguda.
e em mim nada há:
nem sono nem cansaço.
e o vazio é tudo em mim.
"tudo sofre,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta."
eu estava a fim de ter algo assim...
que sofre, mas acredita e segue esperando e vai suportando.
talvez seja só uma questão de onde procurar
ou só uma questão de querer achar
ou seja questão de sorte.
eu já repassei minha vida toda
umas quatro vezes e a manhã nem se insinua
- ainda é noite, e noite densa.
saudade do mar,
mas, por que ir ver o reflexo das estrelas na água,
se deitado no chão da praça vejo-as sem ondulações?
talvez eu ame a inconstância
e ninguém tenha me avisado isso - mas...
logo eu que tanto amava regras?
é estranho isso.
a vida - em sua mais cotidiana ironia -
mudou as medidas para mim...
sinto-me excluído do processo normal.
não parece,
mas, em poucos dias,
completarei dezessete invernos
- mas são só dezessete.
quem me vê de relance
nas vielas da existência
sempre aposta que o ressecamento
dos lábios e a frieza rotineira
são frutos de uns vinte invernos rigorosíssimos
- mas vivi apenas dezesseis,
em poucos dias virá o décimo sétimo inverno
sem trégua
sem estação intermediária
sem floração
sem frutos
e o sol não aparece na porta
é só o inverno e o próximo inverno.
em poucos dias,
serão dezessete quilos -
ou dezessete litros -
sobre os ombros
- que ora pesam menos,
às vezes nem pesam,
mas geralmente pesam mais
bem mais
muito mais
e eu me vejo
em pleno deserto
experimentando a gélida noite.
mas estou só na praça
- e cansado de metáforas,
e nunca estar dentro
e sempre estar fora
e sempre usar metáforas para eufemizar a dor
falhando sempre em aliviá-la.
o sereno
não me deixa sereno
- na verdade, poucas coisas têm esse poder,
e eu não sei quais são essas tais poucas coisas.
acometido pelo torpor de
quem não comete uma insanidade torpe
- gratuita e ingênua -
desde que nasceu
- relatório vazio
vazio
será o resumo de tudo:
vaso vazio
barril vazio
sem pavio
sem pólvora
sem faísca
a explosão que finda sem ser.
hei de extinguir-me um dia
e nada restará
- do nada ao nada:
o caminho natural.
os pombos negros
a fonte seca
os bancos de cimento
a árvore apodrecida
o ar frio
a madrugada
e a futura manhã incerta
- tudo isso será, se já não é,
nada.
ecoa uma voz familiar:
"lá vem ela!" - eu me levanto
em susto - "lá vem a aurora!
olhem! olhem!"
eu olhei
e não era a aurora
era o meu tio bêbado em suas alucinações:
os sete anos de cadeia não o fizeram bem,
mas ele tinha que pagar pelo assassinato da esposa.
a dor de cabeça
- fiel companheira - não me larga
nem no auge do sonho.
meu tio...
ele era alguém incrível antes do vício,
lembro do carro que me deu -
na saudosa época em que eu não entendia por que
algumas pessoas preferiam adoçante.
esse carrinho não durou uma semana,
as quedas desconjuntaram-no todo
e ele foi pro lixo - contra a minha vontade.
da fase da inocência
pouco restou.
no máximo uns traumas
e umas utopias.
"um coração fora do corpo"
não dá para entender o que falam por aí
e quando o tema é amor
tudo torna-se uma babel
- e no fim a obra fica parada
e ninguém alcança o céu.
quantas frustrações são carregadas...
uns levam-nas nos olhos,
outros - mais sinceros - levam-nas
escondidas na alma
de modo que só uma mão
caridosa pode desvelá-las
- só uma mão - e que só
um olhar lotado de frustrações
pode enxergar.
eu queria poder gritar "lá vem a aurora!"
mas, a essa hora, seria mentira
- e de mentiras já bastam as que eu ouvi
quando criança
e acreditei em todas
e só uma ou duas resistiram a todos esses invernos.
nas mãos da noite
me sinto querido
- como poucas vezes senti.
quem se machuca indo atrás do sonho
não merece consolo
nem tem o direito de lamentar
foi algo decidido
aceite as consequências
e trate-se sozinho
- e o mesmo vale para o amor.
estudo de caso:
a escultura de gesso
e o vaso de barro
da estante da casa antiga.
quebrei-os
e limpei a sujeira
e não deixei vestígios,
quando chegaram em casa,
perceberam a ausência dos objetos
e somaram ao meu sumiço
concluíram o óbvio
e eu fui punido
- não nos deve ser feito de modo diferente.
sofro de refluxo emocional:
quando tudo parecia digerido
as memórias retornam
num fluxo violento.
mas também tenho outras doenças,
não se engane.
quantas promessas são esquecidas...
eu lembro-me de poucas que fiz
- e lembro que fiz muitas.
tão poucas festas
e eu não estou arrependido
tão poucos amores
e eu não estou arrependido
tão pouco tempo.
o momento é dual:
já experimentei doces incríveis
que me deixaram um gosto amargo na boca;
já experimentei amargores
que hoje soam doces;
já ouvi desafinos
que melhoraram uma canção;
já houve ligações que não recebi
e mensagens que não chegaram
pelas quais agradeço todo dia.
o momento é dual
porque a visão é limitada
e a estrada atravessa o horizonte.
nomear o que se sente é generalizar
pois dizer-se triste é dizer
que se está sentindo exatamente
como todos os outros que se dizem tristes.
a realidade retratada exige o fim da preguiça
e a busca da palavra certa.
há quem mereça que se definam
emoções corretamente e há quem
as decifre numa respiração descompassada.
há quem as neutralize com um sorriso
- e por estes últimos apaixonamo-nos.
apaixonar-se:
dar a alguém o poder de abençoar
ou amaldiçoar para sempre a sua vida.
clara me disse isso
e eu concordo com ela.
"mantenha-se firme"
era o que meu avô gritava
quando eu franzia a testa
e tentava relaxar os braços
finos de sete anos
levantando o balde cheio d'água.
e eu olhava para baixo
e via o meu rosto na água do balde
e sorria
e fazia caretas
e depois voltava ao normal (?)
como fazem os meninos de sete anos.
sete anos. sete invernos.
ainda dava para ser feliz.
mas nem lembro se fui.
minha avó cantava bem.
é uma memória boa que tenho.
ainda nos seus últimos dias,
tenho dela boas lembranças.
só o tempo faz isso:
transformar vergonhosas ou complicadas situações
em boas lembranças;
sentirmos saudades dos tempos de escravidão;
dar novos significados a nomes,
músicas e lugares;
girar o ponteiro das horas
e o dos minutos;
e ele geralmente
muda as estações do ano,
mas os dezesseis invernos seguidos
dizem que há algo errado
- ao menos comigo -
com essa parte da história.
e essa noite tão longa...
e essa praça tão velha...
muitas vezes esperei por clara aqui
e ela nunca veio
eu sempre ia à casa dela
e lá ela estava me esperando
e ela reclamava do atraso
e não adiantava falar que havíamos marcado na praça
ela negaria
e - no fim das contas - o importante era estar com ela
- praça ou casa, terraço ou quarto,
calçada, sofá ou cama - o importante era estar com ela.
foi rápida a insinuação da primavera.
na época,
eu não acreditava que assim poderia ser, mas
o tempo continuou correndo sem ela
e o sol continuou a ressurgir todas as manhãs.
ela não era tão necessária.
mas, dessa vez,
estou preocupado.
sem clara, o sol voltou no dia seguinte.
mas depois que perdi aquele sim
o sol está demorando
e pode ser que nunca venha.
eu deveria mandar uma carta para ela
- não para clara - para saber se aquele sim
continua vigorando ou
se ela já se arrependeu de tê-lo dado a mim.
Mas não sei nem o endereço do remetente
nem do destinatário. cabe-me esperar
o nascimento da aurora.
cabe-me ir buscar a aurora!
não sei bem onde o sol
brilha primeiro
- se no mar,
se nas montanhas,
se nos olhos dela.
correrei ao mar
- as montanhas são perigosas
e não sei onde ela esconde seus olhos.
o mar me acolherá.
indo ao mar
a vida volta
indo ao mar
a brisa toca
indo ao mar
oferecer-se
indo ao mar
encantar-se
indo ao mar
cantar barcarolas
e citar que "tudo vale a pena,
se a alma não é pequena."
indo ao mar
a vida volta
mas o tempo não volta
e no descompasso
a gente fica.
mas eu sigo
indo ao mar.
sentir a areia nos pés
é um pedido de rendição
o arrepio sobe e desce
- nada que ela não tenha conseguido fazer.
tirar as sandálias é um ritual,
não por ser lugar santo,
mas por ser inútil ir lá
e não sujar os pés
de minúsculos grãos de esquecimento.
quantas eu vim desafiar
e questionar Deus?
e as ondas disseram repetidamente:
fecha a voz, fecha a voz, fecha a voz...
mar, devolva-me os dias que passei aqui!
dê-me de volta o anel que te atirei!
devolva tudo que deixei aqui!
se possível, até a lucidez.
aqui eu relembro tudo
- outra vez - e parece
que reviver seria reconstituir
um crime perfeito
e crimes perfeitos
não são reconstituídos
pois não são descobertos
ou seja
teoricamente não são crimes.
eu já escrevi uns poemas bem mentirosos
diziam que eu chorava
quando a vida virava uma casa abandonada...
mentira, mentira.
eu mantive todas as dores silenciadas
e no meio do inverno polar
eu fazia do abrigo
uma mansão de veraneio.
a parte boa da loucura
são as possibilidades.
assim, a lógica morre
e a gente calcula "de olho".
a gente mede se vale a pena
pela profundidade do olhar
e esquece de calcular distâncias
e diferenças.
o cálculo geralmente dá errado,
mas calcular torna-se um prazer.
mas o cálculo dá errado.
mas calcular torna-se um prazer.
mas o cálculo dá errado.
depois de um sim
desliguei-me da vida.
agora
tento atualizar-me
e a bendita manhã não vem vindo.
há quem me guarde das besteiras:
anteontem, eu estava decidido
a calcular "de olho"
e uma ideia antiga me ressurgiu à mente:
prefiro cálculos que dão certo.
e quando eu penso em reclamar
da vida
do peso
do frio:
fecha a voz, fecha a voz, fecha a voz...
eu nunca fui dos corajosos,
mas já tive momentos de coragem.
eu nunca fui dos briguentos,
mas já peguei brigas por aí
por amigos
por ideias
por instinto
por raiva
por vontade.
se me orgulho disso?
não sei. poderia ser pior.
a vontade que vigora
é a de dissolver-me no mar
de aprender sua fluidez
e na ampulheta há pouca areia
e na linha onde os azuis se encontram
surge
a aurora
em tímidos raios
que redesenham a imagem
e iluminam os cantos negros
- assim acontece também
cada vez que, depois de dias
trancados num escuro,
nos desapaixonamos
e na luz que entra
vemos a podridão que sai
e a insanidade que vai
e as dores que não foram
e as novas que chegaram
- para ficar.
enfim, veio a aurora
e eu nem tenho reação,
é só a aurora
ela sempre vem
e no horário certo
eu é que fui impaciente
a gente acha que tudo muda
depois de um sim,
mas nada muda.
"não há nada de novo debaixo do sol."
por mais que o tempo passe
e as coisas aconteçam
nada de novo.
cansado de tentar entender
mas inquieto por não ter respostas.
a aurora veio
e veio alva a alva
mas não há nada novo.
o relógio lá da igreja
deve estar funcionando normalmente.
o meu sempre está quebrado.
ainda valeria a pena ir visitá-la?
mas eu nem sei onde é...
só para perguntar se o sim foi de verdade?
mas eu nem sei onde é...
só pra perguntar se o sim continua sendo sim?
mas eu nem sei onde é...
e ainda que soubesse
não saberia como falar
- não quero parecer cobrar uma obrigação -
e ainda que soubesse como falar
não sei qual seria sua reação
e eu tenho medo de magoá-la
com essas perguntas sem sentido
essas perguntas tão egoístas
essa pergunta de mim
- que sou tão egoísta.
veio
a aurora e,
em
breve,
virá
a noite novamente
e
eu preciso de um abrigo
preciso
achar minha casa.
preciso.
e
não será aqui que acharei.
preciso
voltar à cidade.
preciso
achar minha casa.
indo
à cidade
a
vida volta
indo
à cidade
tudo
a minha volta
modifica-se
indo
à cidade
vem
a cidade
indo
à cidade
para
rever os esboços
esquecidos
no passado.
indo à cidade
a vida volta
mas o tempo não volta
e no descompasso
a gente fica.
mas eu sigo
indo à cidade.
vou
à cidade também
por
ter um compromisso às duas da tarde.
mas
já estou quinze minutos atrasado
-
o que, somado aos cem anos de atraso
do
meu nascimento, resulta num
atraso
imperdoável.
devo
esquecer esse compromisso
e
dedicar-me a achar minha casa
pois
a noite virá
e
eu não tenho onde recolher-me.
a
cidade começa na casa das marias.
a
casa tem história e comporta três irmãs
três
marias:
maria
madalena sempre foi feia
e
grossa e solitária
e
assim nunca casou;
maria
marta sempre foi preguiçosa
e
até casou
mas
o marido foi pra capital
-
há uns vinte anos –
e
nunca voltou;
maria
maria sempre foi perdida
engravidou
solteira
mas
o filho não vingou
e
engravidou novamente
e
teve o filho
e
deu-lhe o nome de joão.
e
joão, filho de maria maria,
é
vizinho das três marias.
nunca
namorou
nunca
casou
nunca
foi visto nas casas de moças
também
nunca foi de ir à missa
menino
estranho.
e
jonas é vizinho de joão.
jonas
faz jus ao nome:
teimoso
como porta emperrada,
mas
este não vai a nínive
nem
a tarsis
permanece
por aqui
e
vai morrer qualquer dia desses
por
aqui.
jonas
amava uma mulher de longe,
mas
ela morreu antes de ele a pedir em casamento.
jonas
vai morrer qualquer dia desses
por
aqui.
e
carmem é vizinha de jonas.
dona
carmem é viúva
e
a viuvez foi sua libertação
juarez
a massacrava muito
batia
xingava
e
estranhamente
no
enterro de juarez
carmem
chorava como quem perdia um amor
como
quem enterrava a última esperança
e
por dois anos só vestiu preto e dor
mas
hoje já veste sutil felicidade
num
vestido azul-claro.
os
vizinhos de carmem
são
luís e júlia
casados
há quarenta e três anos
e
parecem ser felizes
apesar
de tudo.
e
a casa vizinha à casa
de
luís e júlia
é
dos meus pais
mas
nem sei se é a minha.
vou
verificar isso agora.
eu
na
verdade
preciso
pensar um pouco
no
que devo dizer
para
ter minha casa de volta
ou
para voltar a ser inquilino
de
um casebre antigo e mal amado.
sentado
na calçada
sob
o sol das duas e meia da tarde
devaneio.
a
discussão foi desnecessária
e
mesquinha
eu
também falei besteira e
eu
agora vejo em parte
a
parte que me cabe
e
que aos outros parece descabida.
e
nem tudo o que eles falaram era verdade
mas
a verdade
não
precisa de fatos
para
ser verdade;
não
precisa de filósofos
para
ser verdade;
não
precisa de religiosos
para
ser verdade;
não
precisa nem ser verdade
para
ser verdade.
a
mentira
só
precisa de um pouco de paixão
para
ser verdade.
e
quantos absurdos
não
se tornaram verdade
só
por serem ditos por vozes doces
ou
cálidas?
vi
naqueles olhos inflamados
que
me gritavam todas as falhas
um
resquício de refúgio infantil.
olhos
de fogo
-
ora acesos, ora silenciados.
e
quando fui cobrado à resposta
não
consegui dizer nada.
tudo
tão lento
tudo
tão cheio
tudo
tão carregado
há
obras na estrada
obras
que nunca acabam.
no
silêncio
me
vi forte.
nunca
fui revolucionário.
revoluções
estouram a toda hora
e
poucas revolucionam
e
as poucas que o fazem
nem
sempre melhoram as vias da sobrevivência
-
umas caem no calabouço do terror,
outras
se elevam e fecham-se e acabam atrasadas.
nunca
fui incendiário
e
o meu diário – que não existe –
só
fala de rotinas e esperanças.
há
quem procure outros de mim.
certifico-lhes
que não acharão.
o
que tantos invernos consecutivos
construíram
e esculpiram e vão finalizando
é
impossível
em
terras que vivem
impúberes
primaveras de duas semanas
ou
duas horas.
a
obra do inverno é exclusiva
-
o mais incipiente raio de sol
pode
descreditá-la.
em
cova rasa e mal tapada
jaz
a última semente
que
intentou florar
em
minhas terras inférteis.
ao entrar em casa lembro-me
de que só minha mãe está lá
- meu pai só volta à noite -
e assim
ando mais calmo
e bato leve à porta
e sou recebido com um sorriso surpreso
mamãe está aliviada
tinha medo de um suicídio meu
- os comentários pela cidade seriam
os piores -
e há mortes mais dignas - há? -
ela pergunta se tenho fome
e mesmo tendo
digo não tenho
digo que vou ao quarto
o quarto que nunca me viu as lágrimas
mas já me viu a ouvir fados
e a cantá-los n'alma;
já me viu a ler Pessoa e outras pessoas
e a sentir os versos caírem n'alma;
já me viu escrever dores
a gotas de sangue d'alma;
já me viu sonhar
o mais belo pesadelo de amar;
já me viu em noites em claro
no escuro que reina n'alma;
já me viu em noites calmas
e em manhãs preguiçosas
a sorrir a ausência das turbulências;
já me viu matar paixões
a golpes de razão;
já me viu desfalecer em noites quentes
e tremer em noites frias;
já me viu quase morrer
imerso no silêncio d'alma.
e vou ao fundo da casa
onde há roupas minhas
estendidas a dormitar no varal
às carícias do vento
e vou lavar o rosto
no tanque d'água
- reservatório para tempos de seca.
e o tanque é grande
e ao abaixar-me
para lavar-me
vejo o meu rosto
o velho rosto
mal dormido
mal desenhado
mal vivido
quase morto
e vendo o rosto
lembro os meus delitos
e os meus pecados
e os meus gritos
e lembro que me odeio
por ser quem sou
figura admirada
mas igualmente repugnante
e o vento balança as roupas
e o vento balança os galhos
e o vento balança os meus olhos
e me vejo no espelho d'água
e faço guerra santa
"morte aos infiéis!"
o homem que vejo deve morrer
e é missão minha matá-lo
pulo ao seu pescoço
no espelho d'água do tanque
- e a ferida estanca -
e me perco
imerso no espelho d'água d'alma
e não emerjo mais
e não emerjo nunca mais
vivo agora
imerso no espelho d'água d'alma.
Raul Cézar de Albuquerque
17-22/03/2013
Simplesmente perfeito.Parabéns!
ResponderExcluirEu provavelmente criaria uma versão compacta do poema caso decidisse pegar os trechos que mais gostei, he.
ResponderExcluirMas incrível Raul, não apenas devido á extensão da obra, mas pela lucidez presente mesmo nas partes mais ilógicas ou cubistas. Genial! Genial!