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le sorriu. E, mantendo o sorriso,
guiou-a até a porta e despediu-se com um aperto de mão fraco, só pra não passar
por médico grosso. Aquele sorriso parcial e inexpressivo que parecia ser tão
cordial, na verdade, escondia uma face irônica: “Ela está aqui rindo, mas não
deve durar muito. Já é um quadro muito avançado.” Foi fechando a porta
lentamente e mantendo o sorriso, mas no exato momento em que se fechou a porta,
fechou-se também o sorriso. Aquele sorriso fechou-se.
Fechada a porta, ele correu
para a sua cadeira e desabou como se tivesse sofrido trabalho escravo, situação
muito longe da sua. Olhou para o relógio e, com profunda raiva de alguma coisa,
percebeu que ainda eram cinco horas. Logo, ainda havia um paciente.
Pediu a alguma coisa ou
alguém que regia o universo que o paciente faltasse por qualquer motivo. Não
importava o motivo da falta, o que importava era ele ir pra casa mais cedo para
realizar mais uma tentativa de ser feliz sozinho. Ele realizou uma prece sem
destinatário definido com os olhos fixos no relógio. Depois olhou para o
telefone e esperou ouvir que o último paciente faltara.
O telefone tocou. Ele
atendeu. O paciente viera. Na verdade, a paciente viera. Sem dizer uma palavra,
ele maldisse toda a sua existência até ali. Retomando as palavras, disse que
ela podia entrar.
Ela deu leves batidas na
porta e, rapidamente, abriu-a. Deu de cara com o sorriso dele.
Ele sorriu. Armara aquele sorriso na hora e era exatamente igual ao
último, aparentemente. Este também era parcial e parecia cordial. Este escondia
uma face irada contra o tudo, ou contra o nada, ou contra o todo de uma vida
que geralmente, juntando mais e menos, problemas e soluções, defeitos e
virtudes, resulta em nada.
Com o sorriso, indicou a
cadeira. Ela sentou-se. Ele percebeu que o rosto era conhecido, mas recorreu à
ficha para descobrir qual o nome e o caso daquela que deveria ter faltado. Não
achou a ficha e, mesmo assim, continuou a penosa conversação.
- Oi, qual é o problema que
lhe traz até aqui?
- Doutor, eu já
vim aqui há algum tempo com algumas dores e o senhor me indicou vários exames.
Demorou um pouco, mas eu fiz todos. – colocou os papéis sobre a mesa – Estão
todos aí!
Com grunhidos
indiscerníveis e monossilábicos, ele ia analisando os exames com uma preguiça
que parecia atenção e paciência, mas não passava de preguiça, a mais vil e
pecaminosa preguiça.
Depois de certo
tempo investido em fingir ler resultados, ele olhou para ela com tom de quase-compaixão,
pegou uma folha, começou a rabiscar termos ilegíveis e, de modo desdenhoso,
entregou-a a folha com várias prescrições bem paliativas.
Ela segurou o
papel, guardou-o na bolsa, levantou-se e agradeceu sinceramente. Caminhou até a
porta lentamente, cuidando para não fazer muito barulho. Estava decidida a
sair, mas algo a impediu de fazê-lo. Ela permaneceu segurando a maçaneta da
porta, mas não a girava. Mantinha o olhar fixo no relógio que marcava algo em
torno de 17h45min. Ela olhou pro médico e perguntou:
- Senhor, me desculpe a indelicadeza, mas... –
pausou-se por algum motivo de auto-regulação e retomou – eu vou morrer?
- Claro! – disse
ele com cara de brincadeira – todos nós morreremos um dia.
- Doutor, guarde
suas piadas para quem gosta. – tomou um tom sério e lamentoso – Nós dois
sabemos do que estou falando.
- Desculpe-me, a
intenção não foi ofender...
- Por favor,
poupe o nosso tempo e diga logo se irei morrer por causa dessa doença ou não! –
já não era a mulher que entrara timidamente, ela agora lutava pela sua vida, de
certo modo.
- Quer se
sentar? Acalme-se conversaremos com calma sobre este assunto. – Ela logo se
sentou e manteve o olhar inquisidor.
- Pela sua
recusa, entendo que eu vou sim morrer por causa desta doença. Então, você poderia
me dizer quanto tempo eu tenho de vida?
- Nós... – Já
muito assustado falava rapidamente e, às vezes, muito pausadamente – Nós não
podemos afirmar um tempo exato...
- Entendo, eu
posso morrer atropelada ali na esquina, posso ser assassinada pela minha filha
amanhã... Entendo... E acho melhor que não me diga. Nessa idade, já deveria ter
me acostumado a viver cada dia como se fosse o último.
- Não seja tão
fatalista, tente ser mais otimista – ele nem pensava no que falava, só citava
frases decoradas durante a vida profissional.
- Otimista?! –
ela tomou tom sarcástico – O otimismo é o disfarce dos que nada esperam da
vida. Otimistas alienam-se ou frustram-se. Os realistas geralmente têm suas
expectativas correspondidas. Eu sou realista! Sem negar que tenho traços
pessimistas, mas porque a vida me obrigou a carregá-los comigo.
- A senhora fala
– ele abaixou as armas – como quem já sofreu muito.
- Meu caro, -
vestiu a capa do eterno lamento – eu tenho 57 anos! Eu já vivi muito, por
conseguinte, já sofri muito. Mas... Por que logo agora? – lágrimas tomaram-lhe
os olhos.
O médico já não
sabia o que fazer ou falar. O silêncio longo e tenso tomou tudo. Tomou a sala,
as duas almas, os quatro ouvidos e as duas bocas. Tomou as duas vidas. Assim,
aquele silêncio tenso e longo tomou e retomou infinitas lembranças.
- Por quê? – ela
já não falava para o médico, perguntava a alguém dentro ou fora dela – Para
mim, tudo sempre foi muito triste, tudo foi muito “é melhor esquecer”. Quando
tudo parece estar mudando pra melhor, quando tudo muda de figura, eu fico
sabendo que vou morrer! Mas, por quê?
Depois desta
fala tão clara, o médico levantou os olhos e viu todos os sulcos da face
daquela mulher sendo preenchidos por correntes de água que fluíam sem parar de
seu olhar, até então, tão sóbrio.
Humanidade.
Fragilidade. Estas palavras nunca se fizeram tão sinônimas. Ele temeu pela sua
vida. Ele olhou para a estante de livros e percebeu o quanto eles eram
supérfluos. Lembrou-se do quanto tinha estudado para chegar até ali, do tempo
investido para chegar até ali, até aquele cansaço, até aquela tristeza, até
aquela semi-morte, a morte que só espera a consumação científica.
Aquilo nunca lhe
havia acontecido. Lembrou-se de um encanador que viera uma vez ao consultório
para reparar um problema qualquer. Enquanto esperava o pagamento, o homem, que
parecia ter seus quarenta e tantos anos, lia um livro pequeno. Quando o médico
ia dar-lhe o dinheiro, não pode deixar de observar uma frase destacada na
página: “A vida é um vão entre dois nadas.”
Aquela frase
agora fazia todo o sentido. No momento, foi motivo de um riso debochado,
seguido de um pagamento frio. O homem até murmurou um “obrigado!”, mas não
ouviu a resposta. O médico é que lhe devia um grande “obrigado!”. A frase
mudaria sua vida.
Depois da
introspecção, ele voltou os olhos para a mulher. Percebeu que ela aprontava-se
para sair e que ela já tinha enxugado as lágrimas. Viu-a sair lentamente. Viu-a
segurando novamente a maçaneta. Viu-a girar a maçaneta. Viu-a abrir a porta.
Viu-a ir-se sem fazer barulho. Viu-a sumir na penumbra do corredor que levava à
sala de espera. E, não mais a viu.
Ele fechou os
olhos. Ele respirou fundo e afundou-se na cadeira. Ele abriu os olhos. Ele
pensou em olhar para o relógio pra ver a hora, mas não o fez, pois não era
necessário. Ele olhou para algo pela janela. Ele fechou os olhos novamente.
Ele sorriu. Mas este sorriso era inédito. Este eu não entendi. Nem ele sabia por que sorria. Só posso afirmar que ele sorriu.
Raul Cézar de Albuquerque
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