Era noite densa e ele só via
a névoa que tomava a rua. O dia havia sido monótono. Seus olhos ansiosos quase
não piscavam e pediam que algo acontecesse urgentemente - pois bem, nada
aconteceu. Ele desceu à rua para ver se algo acontecia - pois bem, nada
aconteceu.
Decidiu sair para ver a
cidade à noite - sem considerar os perigos de sair naquele horário sem avisar a
ninguém, pois mulher e filhos dormiam.
O primeiro passo foi difícil.
"Como é difícil fazer o que nunca se fez!", ele pensou em voz baixa.
Respirando fundo o ar frio que andava por ali, ele foi andando pela rua de sua
casa, que era iluminada, mas estava deserta. Para ele, o ato de sair andando pela
rua por nada era ilógico - mas pareceu-lhe necessário.
Virou a esquina sem medo -
mas com ânsia, aquela ânsia que toma as crianças no dia anterior a uma viagem
ou a um passeio e que as deixa sem sono, sem fome, sem outras vontades, que as
prende de modo singelamente escravista.
A rua pela qual ele andava
agora era longa e pontualmente iluminada – era necessária muita perícia para
não tropeçar em pedras ou pisar em buracos. Mas ele seguia – sem rumo e sem
guia, mas seguia.
Numa calçada pouco limpa,
onde dormiam alguns homens barbudos, ele sentou-se sem motivo e ali ficou por
alguns minutos. Ali pensou em como não havia construído nada e como tudo em sua
vida estava sem perspectiva de futuro – ao menos, de um bom futuro.
“Nada vai bem, mas... como as
pessoas permanecem inertes diante de um prenúncio tão claro? Como eu permaneci
tanto tempo inerte? Por que permaneço inerte? Talvez, porque é mais fácil ficar
inerte e fingir que nada acontecerá – mas... e quando acontecer, o que
faremos?”, divagava ele.
Imaginou a imagem dele, ali
sentado, ela horrorizou-lhe e ele levantou rapidamente. Limpou as mãos e a
calça – simultaneamente – num ato reflexo. “Como faço coisas de modo
automático! Não posso me orgulhar disso.” Recriminou-se.
Era madrugada e só ouvia-se o
vento na rua. Ele vagava e divaga pela rua. Sem sono, ele continuou andando e
vendo mães dormindo abraçadas aos filhos – aos muitos filhos – e lembrou-se dos
seus filhos: três crianças ingratas e irritantes, segundo ele. Viu também
homens – provavelmente bêbados – abraçados a cachorros – “dizem que os iguais
já não se repelem”, pensou num respingo de humor próprio.
Não havia lágrimas ou
soluços, mas havia choro e aquele lugar era choro. Sem lágrimas e com chuva.
Sem soluços e com uivos dos ventos noturnos. Tudo ali era choro.
Seus olhos fecharam-se
lentamente e, quando abriram, avistaram uma criança dormindo sozinha. Seu
ímpeto era ir até lá e levar aquela pobre e anônima para a sua casa – mas ele
percebeu que ele não era assim, algo havia de errado com ele. A criança ali
permaneceu.
Noutro relance, ele sentou-se
na calçada e viu uma mulher – velha, negra e gorda – que lhe lembrava sua avó.
Para ser sincero, ele nunca conhecera sua avó, mas imaginava-a assim. Pensou em
deitar ali e até inclinou as costas, mas o chão pareceu-lhe desconfortável –
duro e frio. Seguiu viagem e voltou para casa – tudo voltaria ao normal, ao
caos normal.
Ao chegar a sua casa,
percebeu que a mulher esperava-o sentada na cama – sonolenta e inexpressiva,
como sempre. Ela perguntou-lhe o que houvera acontecido e aonde ele fora àquela
hora, e ele respondeu: “Fui fazer um passeio.” Deitou-se e dormiu em pouco
tempo.Na manhã seguinte, ele não
estava lá. Tudo no lugar certo e um bilhete mal-escrito que dizia:
“Fui passear, não me espere, é possível que eu não volte, é possível que eu volte, é possível tudo, tudo é possível, durma agora, é domingo, ainda há tempo para dormir, durma, pois é domingo. Mas, a mim, não importa se é domingo, não poderia continuar dormindo. Do seu viandante sobre as nuvens.”
Raul Cézar de Albuquerque
- Aventurando-me nos contos.
Meu amado amigo/irmão belíssimo,é um texto como esse que noa dá um estalo sobre nossa verdadeira realidade.
ResponderExcluirEu demorei um pouco para terminar de ler...
ResponderExcluirMe lembrou a demora de quando leio Tolkien, mas de maneira menos, er, demorada - matemática trava minha mente certas horas, ignore.
Parabéns. o/