Bem-Vindo ao Estação 018!


Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

"Metamorfosis" (de Pablo Neruda)


Recebi um pontapé
do tempo e desordenou-se
a triste gaveta da vida.
A hora se atravessou
como doze perdizes pardas
em um caminho poeirento
e o que antes foi uma
passou a ser oito e quarenta
e o mês de abril retrocedeu
até transformar-se em novembro.

Os papeis se me perderam,
não se encontravam os recibos,
encheram-se as lixeiras
com nomes de contribuintes,
com instruções de advogados
e números de gostosas.

Foi uma catástrofe silenciosa.

Começou tudo num domingo
que em vez de sentir-se dourado
se arrependeu da alegria
e se portou tão lentamente
como uma tartaruga na praia
não chegou nunca à segunda-feira.

Ao despertar-me encontrei-me
mais descabelado que nunca,
sem precedentes, esquecido
em uma semana qualquer,
como uma maleta em um trem
que viajara a nenhuma parte
sem condutor nem passageiros.

Não era sonho porque se ouviu
um mugido longo de vaca
e logo trouxeram leite
com calor ainda das úberes,
além mais me rodeava 
um espetáculo celeste:
a travessura dos pássaros
entre as folhas e a névoa.

Mas o sério desse assunto
é que não continuava o tempo.
Tudo seguia sendo sábado
até que a sexta-feira aparecia.

Aonde vou? Aonde vamos?
A quem poderia consultar?

Os monumentos caminhavam
para trás, empurrando o dia
como guardas inexoráveis.
E desmoronava para ontem
todo o horário do relógio.

Não posso mostrar à gente
minha coleção de calafrios:
senti-me só em uma casa
perfurada por goteiras
de um aguaceiro definitivo
e para não perder o tempo,
que era o único perdido,
rompi as últimas lembranças,
despedi-me de minha farmácia,
joguei ao fogo os talões,
as cartas de amor, os chapéus,
e como quem se atira ao mar
eu me atirei contra o espelho.

Mas já não me pude ver.
Sentia que se me perdia
o coração precipitado
e meus braços diminuíram,
desmoronou-se minha altura,
a toda velocidade
se me borravam os anos,
voltaram os meus cabelos,
meus dentes apareceram.

Em um fulgor passei minha infância,
segui contra o tempo na pista
até que não vi de mim mesmo,
de meu retrato no espelho
apenas uma cabeça de mosca,
um microscópico óvulo
voltando outra vez ao ovário.

Poema "Metamorfosis" de Pablo Neruda.
Escrito em Isla Negra, em 1969. Publicado em "Fin de Mundo" em 1969.
Traduzido por Raul Cézar de Albuquerque.

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