Bem-Vindo ao Estação 018!


Seja bem-vindo ao "Estação 018"! Um blog pouco reticente, mesmo cheio destas reticências que compõem a existência. Que tenta ser poético, literário e revolucionário, mas acaba se rendendo à calmaria de alguns bons versos. Bem-vindo a uma faceta artística do caos... Embarque sem medo e com ânsia: "Estação 018, onde se fala da vida..."

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

tudo



todos os tudos que me cabem
já não cabem na caixa
e transbordam - no bordado
do forro.

e fui à forra 
forjando verdades
verdes de tão maduras
mas mais duras que
o concreto teto do sonho.

e na morte já morta
de cansaço no regaço
da dor que sem dó 
parte da parte bela do
passado mal passado
e construído na contraída
aspiração.

respiração ofegante
na ida causticante ao sonho
que cansa da dança inexperiente
no torso indecente da imagem
sem margem nem moldura
imersa na candura da pureza
sem certeza do futuro
duro e escuro.

Raul Cézar de Albuquerque
28/02/2013

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

"Les Misérables": letra e melodia


 

O filme que tanto prometia acabou por levar apenas três Oscar® - sendo um deles individual. O filme prometia pelo simples fato de ser baseado num musical de - ninguém mais, ninguém menos que - Schönberg, que é baseado num dos melhores romances de todos os tempos: "Os miseráveis" do francês Victor-Marie Hugo, ou só Victor Hugo.


A obra é encantadora, belíssima, envolvente e muito bem construída; não perde a carga psicológica do romance francês nem falha nos princípios técnicos; tem um acompanhamento instrumental invejável às músicas e possui bons cortes de cena.

Mas basicamente três pontos separam-na da perfeição:


1 - Não há diálogos normais.
Isso mesmo. As falas são - em sua maioria esmagadora - cantadas, e tais falas nem sempre encaixam na melodia, o que cria um desconforto no espectador. Perderam-se ótimas falas tentando cantá-las. Se houvesse sido mantido o script comum dos musicais (falas e músicas), o longa ganharia mais leveza e - ironicamente - ritmo.


2 - A atuação mediana do elenco masculino
A Anne Hathaway dá um show - e sua interpretação de "I dreamed a dream" é tocante -, a Amanda Seyfried também encanta com seus agudos limpos; mas o Hugh Jackman e o Russell Crowe - talvez pelo excesso de falas cantadas e falta de músicas de verdade - acertam poucas vezes durante todo o filme. Dentre os homens solistas, o Eddie Redmayne é um destaque pela qualidade vocal.


3 - O longa é muito longo - e cansativo.
O filme dura quase três horas - o que não é problema para um musical, mas o fato de a música nunca parar cria no espectador um sentimento de "saco cheio", de modo que às duas horas de filme o desejo de sair da sala vai aumentando... e alguns não resistem, eu resisti.


O final do filme é - no mínimo - estranho: uma cena com todos os mortos - em batalha ou não -, cantando alegremente sobre a revolução que nunca morre...
A trilha sonora é incrível, maquiagem e figurino também. Mas Tom Hooper deixou a excelência escapar por detalhes... que pena!

No jardim de Medusa


desceu sobre mim teu olhar 
e fui pedra.

o tanto que busquei-te
para condenar-te e castigar-te
para matar-te, roubar-te a cabeça
e entregar-te à traída.

saí de meu dia 
e caminhei para as tuas densas
escuridões - para matar-te.

falavam de um rosto angelical
numa moldura que serpenteava
- belas letras desenhadas
em pele de cobra.

  segui e fui e continuei
e segui e fui e continuei.

quando a luz minguou
e a noite foi caindo, senti
que te aproximavas
- a cegueira já me tomava.

da escuridão surgiste
com teus cabelos vivos
e eu - que fui designado
para matar-te - 
entrei em teus olhos
e então fui pedra.

hoje já não me movo
nem movo moinhos
- sou água passada e petrificada.

hoje estou no teu jardim
- como alegoria -
no meio dos tantos outros
que tentaram matar,
mas renderam-se
e acabaram aqui
- no teu jardim.

e aqui há anjos,
fontes, pombas,
figuras anônimas
e há eu
- que não sei o
que faço aqui.

um dia alguém há
de serrar-te o pescoço
e levar tua cabeça no escudo
- e serei liberto.


mas desceu sobre mim teu olhar 
e sou pedra.

Raul Cézar de Albuquerque
26/03/2013
Dedicado (atrasadamente) a Laisa Barreto.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

I - Clichê

 
O texto a seguir faz parte de um projeto maior - ainda sem título. Então, faço minhas as palavras do grande Camões: "Cantando espalharei por toda a parte,/ se a tanto me ajudar o engenho e arte."

Eu - este retrato inacabado,
grito sufocado, sorriso asfixiado,
monstro de frieza e cálculo,
onda que desponta e finda
imersa na parte madura 
do caos juvenil,
nota que é sempre desafino,
aviso esquecido, anotação ignorada,
por ora, sem nome, sem data,
sem passado, sem futuro,
cheio de sonhos, lotado de medos,
hoje acometido pelo sonho 
medroso e covarde de 
não percorrer o próprio caminho 
sozinho - amo - seja lá 
o que isso queira dizer, seja lá
o que isso queira me trazer,
seja lá o que eu queira dizer com isso,
seja lá o que se entenda disso,
seja lá de onde tenha vindo isso,
seja lá... onde quero chegar,
seja lá qual seja a conjugação
correta deste verbo incerto
que trêmulo se esconde
no dicionário entre os vocábulos
comuns - você - que ainda é incógnita, 
que ainda
não entendo, que ainda me confunde,
que me põe perdido em seu infinito,
que dança minimalistamente 
no campo plano da incerteza,
que já passeou tanto nos meus
devaneios cantando em línguas
que eu não conheço, falando de
coisas que não vivi, esquecendo
o passado remoto e aceitando
meu mais louco e breve pedido - ?

Raul Cézar de Albuquerque
25/02/2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Lazarar


pregada na parede barrenta
a barroca imagem lazarenta.
que não é de lázaro, ironicamente,
é de outro personagem fremente.
é de um tal moço de nome jesus
que vive colado naquela cruz
pregada na parede barrenta
a barroca imagem lazarenta.

e o homem que com o sol acorda
encontra naquela imagem a corda
do pleno não-suicídio diário
e da pureza longe do vigário
que fala tudo no mais belo latim
ninguém entende - melhor assim.
e o homem que com o sol acorda
nunca sai da margem - da borda.

e quando olha aquela imagem
não vê sonho nem miragem
o triste homem vê-se no espelho
- aquele rosto sofrido é o seu modelo.
o sofrimento que não tem fim
o pedido de misericórdia sem sim
e quando olha aquela imagem
não vê sonho nem miragem.

a lavoura espera improdutiva
pelo homem de vida cativa
não cativada, mas em cativeiro
catando o sonho nunca inteiro
de ser de verdade
de ser da cidade
a lavoura espera improdutiva
pelo homem de vida cativa.

bate o sol impiedoso ao meio dia
na terra de fartura sempre arredia
a barroca imagem inerte permanece
da cruz a figura amada não desce
nem desce o sol
como lento caracol
bate o sol impiedoso ao meio dia
na terra de fartura sempre arredia

a testa que sua, o sino que soa,
a vida que é sua, a vida que voa
e nunca pousa naquela casa
d'algum pássaro sem asas
que se prendeu à terra
seca que sempre desterra
a testa que sua, o sino que soa,
a vida que é sua, a vida que voa.

a vida amarga na alma amarga
a tristeza que a mão não larga
morre ele sem prata nem ouro
a roupa de sempre de couro
vai ser trocada por madeira fuleira
ao som do desafino da carpideira
a vida amarga na alma amarga
a tristeza que a mão não larga

ele morre e o tal jesus fica lá
esperando alguém pra retirar
o corpo vai para cova rasa
morto é o pássaro sem asa
que agora experimentaria o céu
ou só o improvisado mausoléu
ele morre e o tal jesus fica lá
esperando alguém pra retirar


pregada na parede barrenta
a barroca imagem lazarenta.
que não é de lázaro, ironicamente,
é de outro personagem fremente.
é de um tal moço de nome jesus
que vive colado naquela cruz
pregada na parede barrenta
a barroca imagem lazarenta.

Raul Cézar de Albuquerque
23/02/2013

Desordem



o caos habita em mim
 desceu ao meu olhar
depois de tantos olhares

o caos habita em mim
 ouviu-se no meio das trezentas
- ou só três - vozes persistentes

o caos habita em mim
 mas não é meu
fluiu de nascentes límpidas até meu oceano

o caos habita em mim
 que vivo à deriva
que vivo sem cais no caos

o caos habita em mim

 e em tudo que me cerca
e é contagioso

o caos habita em mim
 recebi-o como recompensa
ou como castigo 
 por ter sorrido para o céu
quando não havia estrelas
 por não ter ligado a lâmpada
quando a noite caiu
 por ter aceito
quando nem havias feito o pedido
 por ter deposto a lógica
quando quis outra rainha em meu reino - caótico -
 por ter enviado o coração
quando não sabia o destinatário

Raul Cézar de Albuquerque
23/02/2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Fuzilamento


morte grito
quem morreu?
eu!

morte sangue
quem morreu?
eu!


a dor dura
até que a última lágrima de sangue
se vá


morte silêncio
quem morreu?
eu!


morte sequidão
quem morreu?
eu!

a dor perdura
até que a última - única - felicidade
se vá

a dor candura
a dor tão dura
quanto o murmúrio da onda
quanto o ressoar do sino
quanto a própria morte
- que mata sem dó
nem ré nem qualquer nota
obituário?

Raul Cézar de Albuquerque
22/02/2013

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"Canção" (de Allen Ginsberg)


Allen Ginsberg

Irwen Allen Ginsberg é um dos maiores nomes da poesia da Geração Beat e grande nome da contracultura estadunidense. A vida conturbada principalmente pela instabilidade psicológica de sua mãe - que tinha surtos de paranoia e ataques epiléticos frequentemente - marcou fortemente seu estilo e sua abordagem de temas de grande repercussão. Seu poema mais celebrado - e polêmico - é "Uivo" (publicado em 1955), mas o roubo de hoje será "Canção". O poema é simples, mas em si guarda o desconhecido flertando com o óbvio.


O peso do mundo
         é o amor.
Sob o fardo
       da solidão,
sob o fardo
      da insatisfação

       o peso
o peso que carregamos
        é o amor.

Quem poderia negá-lo?
          Em sonhos
nos toca
      o corpo,
em pensamentos
        constrói
um milagre,
         na imaginação
aflige-se
         até tornar-se
humano —

sai para fora do coração
         ardendo de pureza —

pois o fardo da vida
          é o amor,

mas nós carregamos o peso
           cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
          finalmente
temos que descansar nos braços
           do amor.

Nenhum descanso
        sem amor,
nenhum sono
        sem sonhos
de amor —
           quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
           ou por máquinas,
o último desejo
          é o amor
— não pode ser amargo
         não pode ser negado
não pode ser contido
           quando negado:

o peso é demasiado

          — deve dar-se
sem nada de volta
         assim como o pensamento
é dado
         na solidão
em toda a excelência
         do seu excesso.

Os corpos quentes
          brilham juntos
na escuridão,
          a mão se move
para o centro
        da carne,
a pele treme
          na felicidade
e a alma sobe
         feliz até o olho —

sim, sim,
           é isso que
eu queria,
          eu sempre quis,
eu sempre quis
         voltar
ao corpo
         em que nasci.

Poema "Canção" de Allen Ginsberg.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Imiscível



Ela: 
límpida
leve
transparente
por vezes fria - pedrava
por vezes quente - fervia

Ele:
um pouco sujo
grosso
turvo
por vezes próximo - grudava
por vezes removido - fluía 

sempre juntos
amigos inseparáveis
acostumaram-se um ao outro
sorriam interminavelmente
- entrando pela madrugada
os olhares analisaram o caso
- e concluíram: formavam um belo casal
- por que não casavam?
aprenderam as adequações da vida a dois...

era bela, sim, a imagem que formavam 
juntos
mas era bela a dualidade
tinham polos diferentes
jamais seriam um
- uma só carne -
jamais

eram imiscíveis.

Raul Cézar de Albuquerque
18/02/2013

sábado, 16 de fevereiro de 2013

10%

Este es lo décimo poema que te escribo.
Roto. Se rompió el tiempo de las aspiraciones.
Yo creo que sé lo que quiero.
Kayak decidió ir hacia abajo.
Amor que existe sin dudas - sin dudas?

Tal vez sea nuestro el porvenir -
A veces creo que será, pero
Yo puedo estar equivocado...
No me gusta la idea de estar errado.
No me gusta un futuro sin ti.
A veces pienso - con todo el corazón - que seremos felices.

Canto y me callo por miedo. Hablo por miedo.
A veces todo es miedo.
Voy decirte: a veces el miedo se esfuma,
Ay nosotros somos posibles.
Luego yo puedo ser el hombre más feliz de todo el mundo.
Canto y me callo por querer. Hablo por querer.
A veces todo es querer - quererte.
Necesaria es tuya sonrisa a la mía sonrisa.
Todo habla de ti: la musica, el verso, el grito, el silencio.
Ignoto futuro. Te amo como quien decidió amarte por amor propio.

Raul Cézar de Albuquerque
16/02/2013

9%

E mesmo que reverbere alto o passado,
Rogo-te que fiques e que tentes.
Yo ya no durmo tranquilo - sería felicidad?
Kant ainda não explicaria...
Amor? Será? 

Temo que venha 
A iniludível antes da felicidade.
Yo tengo muchos medos.
Não é medo da felicidade.
Não é medo do futuro. É medo de não ser - nem haver -
Amor.

Cansei de pensar, 
A luz do Sol veio e eu não dormi.
Veio a tarde,
A tarde passou e eu fiz pouca coisa.
Lavou o chão a chuva.
Chegou a noite,
A noite correu, o filme acabou.
Não cheguei a nenhuma conclusão.
Talvez não haja conclusão.
Indagar. Afinal, conclusões são para histórias findadas. Cabe-nos viver - amar?

Raul Cézar de Albuquerque
16/02/2013

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

8%

E você é, sim, quem me garante o
Riso feliz no fim do dia.
Yo te amo. Simples assim.
Kit pra ser feliz: você.
Algo em você me alegra.

Talvez não sejamos o que era pra ser.
Agora, somos o que somos - e isso nos faz feliz.
Yo te amo. Simples assim.
Nunca estive tão bem.
Nunca fui tão seu.
Amor: deve ser isso.

Ciúmes saudáveis que eu nem percebia.
Amo-te e sabes disso.
Você nem sabe quantos poemas meus surgiram
Assim: de você.
Linda!
Ciúmes meus - nem sei se saudáveis... -
Acabaram num poema.
Nós sabemos o que sentimos - acho.
Talvez não tenhamos na mão o futuro, mas
Indo, a vida. E nós, vamos juntos? 

Raul Cézar de Albuquerque
14/02/2013

Errata



Onde lê-se "foram felizes para sempre"
leia-se:

"continuaram apaixonados
por mais uns meses - afinal,
nenhuma dor é eterna - e foram
levando a vida juntos.

Houve, sim, brigas - afinal,
nenhuma felicidade é eterna -
e não entreolharam-se,
e não sorriram um para o outro.

Mas voltaram, perdoaram-se
- afinal, nenhuma separação
é eterna - e ofereceram-se
novamente como na primeira
noite.

Uniram-se e assim seguiram,
mas passearam, sim, por caminhos próprios
- afinal, nenhuma união é eterna -,
mas o caminho que importa,
este eles seguiram de mãos dadas.

Houve, sim, amor.
Não digo que existisse já nos 
primórdios dos toques, nas turbulências
dos primeiros olhares,
mas houve. Talvez construído
nas noites frias, talvez descoberto
sob os cobertores, talvez achado
na primeira vez em que perderam-se
- afinal, seria o amor, eterno?"

Raul Cézar de Albuquerque
13-14/02/2013

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Respingos de Genialidade #35



"O problema estava em saber se é a doença que engendra o crime ou se o próprio crime, por sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença, mas isso era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver."

Fiódor Dostoiévski, em "Crime e Castigo"

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Não-linearidade

era plácida a revolta
dois medos numa babel
uma babel no manto sujo
- que merecia ser incinerado
na fornalha afônica do esquecimento.

um olho
vislumbrando pela fresta do sono
o redemoinho cáustico
do absurdo:
ilhas pacíficas.

uma errata
sobre o incorrigível
três dores na tragédia
final feliz sem riso nem beijo
feliz.

Raul Cézar de Albuquerque
11/02/2013





domingo, 10 de fevereiro de 2013

Alforria




I

É tempo de medo e jugo.
É tempo de liberdade necessária
- e arredia.
É tempo de alforria.

II

É tempo de prender
- e exterminar – as borboletas
que insistem em dançar dentro
de mim quando tu ris das minhas besteiras.

É tempo de segurar
esse sorriso ilógico que emerge de mim
pelo simples fato de
estar eu podendo falar contigo.

É tempo de proibir
depredações desnecessárias
do próprio patrimônio
- em favor de um riso,
que nem sei se é de verdade.

É tempo de proibir
palhaçadas, festas, recitais e saraus.

É tempo de castrar
instintos, descontroles
e alegrias – e tristezas – incontidas.

É tempo de por tudo
em ordem.

III

É tempo de proibir
a própria escravidão.
É tempo de sair do mercado
e retirar do pescoço a placa “vende-se”.
É tempo de liberdade.
É tempo de alforria.

IV

É tempo de novos tempos.
de novos rumos.
De novos homens.
De novas ilusões.
De novas casas para a felicidade
- que, há tanto tempo, habita no cume
do mesmo monte inacessível.

É tempo de novidades.
De novas idades.
De novas dádivas.
De novos dilúvios.
De novas luvas
- menos brancas que as de sempre
para disfarçar as impurezas.

V

É tempo de novas rédeas
para os velhos cavalos
- nunca é tarde para aprendermos
o jeito certo de fazer-nos felizes.

É tempo de ler as placas:
“cuidado, animal feroz”
 “afaste-se, alta tensão”
 “cuidado, amor insano”
“afaste-se, pouca atenção”

É tempo de abortos espontâneos,
ou nem tão espontâneos assim
- histórias que findam sem ter começo.

É tempo de partos anormais
- fetos ejetados e esquecidos,
consumados e consumidos.

É tempo de racionamento de alegrias.

É tempo de abastecer de lágrimas
o cantil.

VI

É tempo de amputações voluntárias
- “o meu amor é teu” – e de
aproveitar o sangue que jorra
desses transplantes improvisados
- e geralmente malsucedidos –
para escrever na pele da coxa esquerda
a própria carta de alforria:

“Amo-te, finalmente, como quem quer bem
a um cão sujo que viu na rua.
Mas ainda amo-te com o mesmo ardor.
Já te amei, é verdade, de maneiras mais belas,
mas nunca de modo tão verdadeiro.”

Raul Cézar de Albuquerque
10/02/2013

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Inscrito em pedra


As histórias dos livros são superficiais.
As nossas anotações são superficiais
- basta uma borracha, e apagam-se;
basta um corretivo, e voltam a esconderem-se;
basta uma chama incontida, e queimam-se, voam para o sem-fim.

As histórias que realmente importam
são gravadas - dia a dia - nas placas de mármore
- na alma - pelo cinzel da verdade e pelo martelo 
- que segue golpeando impiedosamente:
tic-tac! tic-tac! tic-tac! tic-tac! tic-tac!

Escrever assim a própria história é
- de certo modo - prazeroso,
pois é começar a distinguir-se dos outros
pelo que já se leva inscrito em si.

E as mais belas histórias são escritas 
nas partes mais destacadas das placas
etéreas da existência.
Mas, se algo ocorre e torna-se necessário
esquecer aquilo, o processo ou é insuficiente
ou é doloroso.
Restam apenas duas opções:

Ou cobrimos a parte que nos insulta
e constrange a memória, o que não traz
um resultado perfeito
- pois sempre resta algo descoberto (que dói) -,
mas é um bom paliativo.

Ou lixamos a parte que nos faz contorcer 
de dor saudosista, o que não é fácil nem indolor
- sentir sua mais bela história desfazer-se
em pó é massacrante -, mas depois de um tempo
não aparecem resquícios da tragédia
e fica-se pronto para outra história
- para outra decepção?

Depois de muitas histórias sobrepostas
- ou só uma que não poderia ser apagada -,
vem a morte e quebra as placas
- sem nem ler o que ali estava escrito.

E agradeço por só ter uma vida.
Se os gatos levam sete vidas, é por que aprenderam a cair
sem machucarem-se e prontos para continuar 
a caminhada. 
Eu, se caio, penso bem se vale a pena levantar
- se vale a pena lixar-se sem piedade até ver-se
pronto para outro conto de final infeliz.

Raul Cézar de Albuquerque
07/02/2013

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

7%

E se ela se for?
Repetitivas vezes perguntei a mim mesmo.
Yo no creí que podría suceder.
Karma? Castigo?
Assim seja, se quer castigar-me o destino, leve-me.

Talvez venha para o bem, mas
Agora está fazendo-me mal.
Yo no te comprendo, tal vez por eso me encante.
Nunca mais serão iguais as noites.
Nunca mais serão iguais as conversas.
Acabou? Acabou.

Caí.
Algo em mim foi-se.
Vozes silenciaram-se - as mais doces.
Algo em mim perdeu-se.
Longe. Longe. Permanecerá longe?
Caio outras vezes - até aprender.
Algo em mim morreu.
Nunca mais serei igual.
Talvez venha para o bem, mas de
Imediato é dor que não acaba mais.

Raul Cézar de Albuquerque
06/02/2013

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Falsidade Ideológica



Rever fotos antigas
é não se reconhecer no próprio rosto.

É perceber que o tempo levou muito
- ou quase tudo, ou tudo - e trouxe outras coisas
- talvez não tão boas, talvez não o que era necessário.


Rever fotos antigas
é procurar-se noutro rosto
- que já foi o nosso.

É procurar no sorriso escolar
e na feição alegre da brincadeira
o olhar cansado que hoje toma a alma.

Rever fotos antigas
é saudar o que perdeu-se na estrada.

Rever fotos antigas 
é entender que a vida é uma peça - de total improviso.

É perceber - do modo mais cronológico -
que o palco nunca fica vazio - pois,
se eu não atuar como protagonista,
alguém entrará lá e roubará as falas.

É constatar que o elenco fixo deve ser o menor possível
- se puder ser, só eu -, pois os coadjuvantes mudam
e passam e vão-se 
- às vezes voltam, mas eu não conto com isso.

Rever fotos antigas
é compreender que o tempo é um bom negociador
- e que em algumas vezes eu saí perdendo.

Rever fotos antigas 
é saber que o futuro promete mais perdas - que ganhos.

É lembrar todos os rostos 
que o amor já teve e ir imaginando
mais rostos - mais belos? - que ele terá.

Rever fotos antigas
é rir do quanto meus sonhos eram incabíveis.

É resignar-se ao saber que o sorriso da foto
- que talvez fosse sincero - baseava-se 
numa infantilidade falida e burra.

Rever fotos antigas
é reconhecer os malefícios da maturidade.

É fazer as contas e concluir que 
trocar flores por frutos - sinal de maturação -
é inteligente - e até satisfatório -, mas não nos torna mais
felizes nem propriamente melhores.

Rever fotos antigas
é começar a temer que a morte chegue antes da felicidade
- do amor e do riso - e conferir se realmente nunca fomos felizes.

Rever fotos antigas
é perceber o quanto há soterrado sob o que se vê
- e o quanto há esquecido e o quanto há para esquecer.

É lembrar as vezes em que
se foi à venda da vida só para perguntar:
com quantas lágrimas se compra um sorriso?

Rever fotos antigas
é desconfiar de si próprio.

É questionar:
eu confio nesse menino da foto desbotada?
E nesse rapaz impúbere da foto eu confio?
E nisso que aparece no espelho quando lá me procuro
eu confio?
Eu confio nesse cara que já foi tantos,
que tanto já mudou e que só se chama pelo mesmo nome
por preguiça ou por descuido?

Raul Cézar de Albuquerque
05/02/2013

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Experimento


E haviam passado pelos meus olhos
os mais variados cálices e copos
com os mais duvidosos e desejáveis líquidos.

Ignorei muita coisa.

O primeiro cálice que levei a sério
era belo - belíssimo.
Como não se pode ir bebendo logo,
senti o aroma daquele vinho:
maduro - talvez demais pra mim;
bom - inegavelmente -,
mas não me conquistou.

Esperei para bebê-lo.
(na velha esperança de que 
melhorasse com o passar do tempo).
Não deu certo.
Continuou igual
- igualmente mediano.

E passaram mais cálices.

O segundo cálice que encheu-me o olhos
- e acabou por esvaziar-me o coração -
era belíssimo - esplêndido.
Tinha um aroma absurdamente
BEBA-ME - e carregava um cheiro
sujo (no melhor sentido da palavra)
que conquistou-me.

Esperei para bebê-lo
- sem porquê aparente,
talvez para estar preparado 
para tudo aquilo.
Enfim, não deu certo.
Virou vinagre
- o mais odioso e imprestável azedume de uma vida.

E veio o terceiro cálice
- ah, o terceiro cálice... -
que ainda me enche os olhos
e espero que me preencha o coração.
É esplêndido - indescritível.
Possui um aroma distante que
me chama para perto - e carrega
o tom do amor que termina
em felicidade ou não termina.

Espero para bebê-lo
- um passo por vez.

Dará certo?
Eu não sei.

Viver resume-se em experimentar ou não.

Raul Cézar de Albuquerque
04/02/2012

sábado, 2 de fevereiro de 2013

"Exilios" (de Pablo Neruda)


Uns por haver rechaçado
o que não amavam de seu amor,
porque não aceitaram mudar 
de tempo, mudaram de terra:

suas razões eram suas lágrimas.

E outros mudaram e venceram
seguindo com sua história.

E também tinham razão.

A verdade é que não há verdade.

Mas eu em meu canto cantando
vou, e me contam os caminhos
todos quantos viram passar
neste século de homens sem pátria.
E o poeta segue cantando
tantas vitórias e dores
como se este pão turbulento
que comemos, os desta era,
talvez foi amassado com terra
debaixo de pés ensanguentados,
talvez foi amassado com sangue
o triste pão da vitória.

Poema "Exilios".
Escrito por Pablo Neruda, em Isla Negra, em 1969.
Publicado no livro "Fin del mundo", em 1969.
Traduzido por Raul Albuquerque