Clara fora amaldiçoada ainda antes de ser gerada. Outras vezes, enquanto era tecida. E, por fim, fora amaldiçoada por sete tias com sete palavras:
"Já é linda, será ainda mais linda!"
E a pobre criança cresceu. Já cedo, sentiu o cumprimento daquelas palavras: dois olhos infinitamente negros, cabelos ainda mais negros e uma pele tão clara e macia que criava inveja nos algodoeiros.
Clara nunca seria mais uma moça. Ela sempre se destacaria. E os garotos - pobres garotos - teriam que trabalhar muito para não se apaixonarem por ela, para mantê-la longe de seus sonhos, para afastarem seu nome das suas bocas. Aos que não tinham tanta força de vontade restava louvar-lhe a beleza, a sinceridade, seu olhar, seu toque - mesmo que dele nunca tenham experimentado.
E o tempo revelava que a maldição cumpriria-se em plenitude:
"Já é linda, será ainda mais linda!"
Mesmo nos primeiros compassos instáveis da juventude, Clara poderia obliterar o mundo com um olhar e recriá-lo ao primeiro sinal de sorriso - e inúmeras vezes ela fez isso com o universos dos desprotegidos.
Clara, pobre Clara, às portas de sua alma, meninos de dez - doze, vinte, quarenta e até cinquenta - anos entregavam suas vidas. E Clara era obrigada a devolver cada caixa com um sorriso no rosto e uma culpa na alma.
A maldição funcionara.
"Já é linda, será ainda mais linda!"
Clara, doce Clara, um dia saiu de casa sem pretensões de encontrar o amor. Olhando para baixo, cantarolava a terceira de sua lista de músicas preferidas e andava rápido. Batiam três horas da tarde no relógio e o sol não perdoava. Chegando ao destino - a padaria - ergueu os olhos que passaram pelos de um pobre homem desavisado. Ela continuou andando, mas ele não. As terras daquele homem haviam sido saqueadas e destruídas.
Na inocência que nem sei se ainda lhe cabia, Clara voltou para casa com um saldo modesto: cinco corações atacados, três mortos e dois em situação grave.
Corrosiva maldição.
"Já é linda, será ainda mais linda!"
E a cada amor dependente criado por ela num coração perdido era motivo para algumas horas de choro vivido e soluçado, depois ela teria de explicar que não poderia haver nada entre eles por que ela nada sentia - por vezes, nem sabia o nome do indivíduo que à sua porta vinha mendigar amor.
Negros olhos, neles poderia ver-se todo o universo e contar todas as estrelas de uma noite - contando-as uma a uma, suspiro a suspiro, sobre o corpo virgem que tanto atraía que assustava os passantes - que a desejavam apenas por vê-la debruçada na janela.
A maldita maldição.
"Já é linda, será ainda mais linda!"
E num devaneio decidiu cortar o rosto, pois as cicatrizes levariam embora a maldição: já não seria bela. Soava a quarta hora do dia, era escuro e tudo na casa era silêncio. Ela levantou-se e foi buscar a faca, pegou-a, voltou ao quarto. Sem ligar a luz para ver o que faria, Clara sacou a faca. Fechou os olhos. Acertou o punho esquerdo. O dia seguinte foi choro e desespero.
A maldição funcionara.
"Já é linda, será ainda mais linda!"
- Raul Cézar de Albuquerque
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